"Triste do país que precisa de heróis"
Clotilde Tavares | 7 de janeiro de 2010Vejo na TV que um menino encontrou uma bolsa, cheia de objetos de valor: relógio, MP3, jóias – e em vez de ficar com tudo devolveu ao dono. O garoto foi recompensado, virou matéria de TV, foi homenageado pelo prefeito da cidadezinha – que ficou muito bem na fita ao lado do garoto – e serviu de mote para as famosas exortações hipócritas nas quais a TV se esmera tanto: “Vejam que coisa linda! Um menino honesto! Filho de agricultores! Pobre de Jó! E devolveu a bolsa! Que coisa mais linda, e exemplar!” Tenho certeza de que domingo ele vai estar no Faustão, como exemplo de “história de vida”.
Minha gente! Ser honesto é obrigação. Ninguém deveria receber prêmio especial nem virar matéria em jornal nacional por achar e devolver um objeto que não lhe pertence. Ninguém deveria ser considerado herói por ser honesto. Talvez por enfrentar as chamas de um incêndio para salvar alguém desconhecido – porque se for filho ou parente é o que se espera, não? Ou por se atirar à água da enchente para resgatar pessoa que vai na enxurrada.
Eu não suporto a boa ação escancarada, para todo mundo ver. Não estou dizendo que o menino fez isso, mas aqueles que capitalizaram o gesto dele assim o fizeram. Para mim, a boa ação real é aquela que fazemos em silêncio, em segredo, onde muitas vezes nem o próprio beneficiado sabe. Mas essa boa ação oculta e secreta não satisfaz a vaidade daqueles que só vêem sentido em ser “bom” se puderem ostentar isso para os outros. E considero o escoteiro fardado atravessando a rua com a velhinha é a imagem perfeita e acabada da hiprocrisia, do “está-vendo-como-sou-bom-correto-honesto?”
É muito triste viver num país como esse, onde se rouba tanto e de tal forma escancarada que um gesto de honestidade é alçado ao nível de “grande gesto nacional”. “Triste de um país que precisa de heróis”, já dizia Brecht em uma das últimas falas da peça “Galileu Galilei”. E eu completo: triste de um país onde um gesto que deveria ser um comportamento natural de honestidade é alçado a gesto de heroísmo.
“Minha gente! Ser honesto é obrigação.”
É, mas no país da lei de Gérson, ser honesto é coisa anormal. É coisa de otário.
E com relação a “heróis” e a “atos de heroísmo”, sugiro a leitura dos dois textos abaixo:
* http://operiscopio.wordpress.com/2008/09/01/os-herois-de-pequim/
* http://operiscopio.wordpress.com/2008/10/22/e-a-sindrome-de-bial-pegou-ate-o-aurelio/